Sou um cara que gosta de pensar a cidade, participo de coletivos que realizam intervenções urbanas e eventos ligados ao assunto. A cidade é um espaço de potência e seu planejamento pode ajudar a despertar o que há de pior e melhor nas pessoas.
Uma das minhas áreas de interesse são as smart cities, ou cidades inteligentes, que são aquelas que utilizam a tecnologia e os dados gerados pelos seus usuários para pautar políticas e criar um ambiente sustentável e otimizado ao uso humano, além do consumo eficiente de recursos, mobilidade e serviços.
Conheci isso na prática ao fazer uma visita técnica ao Centro de Operações Rio, que monitora uma infinidade setores da urbe, como trânsito, locomoção, encostas de risco, previsão do tempo, enchentes, gestão de grandes eventos e outras entre as mais de 250 camadas de programação.
O histórico dos dados gerados pelos sistemas da prefeitura, somados a outros sistemas (Waze, Uber, GPS dos ônibus e até hastags nas redes sociais), criam um enorme banco de dados que analisados corretamente fornecem informações importantes para melhorar a vida das munícipes. Isso é uma cidade inteligente.
Na segunda-feira mais recente aconteceu na FGV um seminário sobre as smart cities, o qual, infelizmente, não pude participar, mas a noite assisti o espetáculo MURS, do grupo catalão La Fura Dels Baus, que faz uma crítica a esse modelo urbano. Por ter a ver com temas que tenho lido ultimamente, achei a apresentação sensacional e uma linha narrativa muito clara passou diante de mim durante toda a encenação. É uma peça para poucos entenderem, principalmente por causa da língua, portunhol e inglês.
O espetáculo é interativo, para participar plenamente é preciso instalar um aplicativo no celular, mas a ligação com o seriado Black Mirror da Netflix não termina aí. Um futuro distópico com pessoas alienadas é outra linha que mantêm próximas as duas obras.
As observações abaixo não têm o objetivo de explicar a peça, apenas apontar os motivos pelos quais saí de lá fascinado.
MURS (aviso de spoiler)
O cenário consiste em quatro salas, com cores diferentes, cada uma representando um aspecto da cidade. A sala azul refere-se ao bem estar, alimentação saudável e prática de atividades físicas pelos seus habitantes. A vermelha é o capitalismo, a possibilidade da ascensão social e os prazeres da carne. A verde representa a sustentabilidade, um ambiente urbano saudável e integrado com a natureza. A última sala, amarela, segurança.
Sala vermelha |
Como dito anteriormente, é preciso instalar um aplicativo que funciona de forma integrada à sala onde o espectador está. Tudo isso é administrado por computadores e antenas que ficam numa torre de aço tubular na intercessão de todos os espaços, representando os sistemas de gestão da cidade.
O público, composto por quase mil pessoas, é divido em quatro, e cada grupo precisa ir para a sala da cor respectiva indicada no celular. Em cada sala é apresentada uma cena curta, sempre interativa, que depois de encerrada recebe uma nova leva de espectadores. Desta forma, todos assistem as quatro apresentações.
Mas a coisa começa a ficar interessante depois desta introdução. Uma bomba explode, dando entender que alguma coisa deu errado no roteiro. Um ator ensaguentado corre pedindo ajuda e outros o acudem. Nos telões, um telejornal noticia um atentado terrorista. Nas imagens, gravadas antes do início do espetáculo, mostram o suspeito, vestindo casaco preto com capuz, deixando uma mochila no guarda volumes.
A partir daí o caos se instala. A foto do terrorista é enviado para nossos telefones e a cidade perde totalmente o controle. Um vírus se espalha, alguns são contaminados e homens dentro daquelas roupas de proteção bacteriológica correm de um lado para o outro. Mensagens de proteção e instrução pipocam na tela do telefone, fazendo com que a gente tenha que correr de um lado para o outro. Fumaça, som alto, imagens ao vivo enviadas de celulares de atores que interpretam uma equipe de televisão, tumulto urbano e uso excessivo da força por agentes policiais. A smart city fica totalmente fora do controle.
Nesta situação, ordens de fechamento das fronteiras são dadas e grades são instaladas entre as salas, impedindo que o público troque de espaço. Este tema está muito em voga, com países se fechando para estrangeiros e refugiados, o novo presidente dos Estados Unidos prometendo construir um muro ainda maior separando o México.
Realidade aumentada |
Neste momento fiquei na sala vermelha e um ator de terno falava jargões, em inglês, utilizados por Trump durante sua campanha, como we will make America great again. Para quem não conhece o idioma e não acompanhou as eleições estadunidenses, realmente fica difícil fazer essa associação e entender a cena, que exacerba o nacionalismo e a xenofobia, colocando nós, os vermelhos, contra o resto do público, numa clara alusão à crescente onda conservadora que está tomando o mundo.
Ao final, figuras que chamarei aqui de anarquistas, vestidos de preto, escalam a torre e começam a depredar as antenas, e quando a maior delas é tombada o espetáculo encerra. Aqueles que foram noticiados como terroristas são os que derrubam o sistema, trazendo a cidade de volta a uma tranquilidade e a uma situação anterior ao controle excessivo proporcionado pela tecnologia. A analogia é clara, o triunfo da revolução dos movimentos anticapitalismo.
Tudo isso acontece no meio do público, em ações que alguns podem achar violentas, como forçar a entrada do espectador numa jaula com rodas que circula pelas salas. Para deixar ainda mais tênue o que é encenação e o que é real, atores disfarçados sofrem ações mais invasivas, como ter peças de poucas arrancadas. Alguns não percebem que faz parte do roteiro e se revoltam com a cena.
A lição que tiro disso é a importância de questionarmos sempre a tecnologia e o futuro para o qual estamos sendo conduzidos. Confesso que nutro uma certa fascinação pelas cidades inteligentes, que são um caminho sem volta, mas toda esse inovação tecnológica precisa ser pautada por discussões éticas e morais que envolvem temas como liberdade individual, privacidade, vigilância, censura e consumo, temas esses levantados por disciplinas como filosofia, ciência política e antropologia. Iniciativas como a Escola Sem Partido são atentados contra a liberdade e colocam em risco nossa essência como seres humanos, criaturas autônomas capazes de pensar por si próprias. Criaturas livres, em suma.
O avanço da tecnologia precisa andar de mãos dadas com as ciências humanas, caso contrário viveremos uma realidade distópica como as que vemos em Black Mirror ou em romances como 1984 e Admirável Mundo Novo.
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