Eu já tinha nascido quando a África do Sul ainda estava sob o Apartheid, regime racista que só terminou quando eu tinha treze anos de idade. Todo o poder político e econômico estava nas mãos dos brancos e aos negros só restavam a pobreza, trabalhar como mão-de-obra barata, restrições de circulação no próprio país e segregação em áreas públicas, como praças, restaurantes e escolas. Tudo isso feito de forma violenta, com prisões e chacinas, como a de Soweto, favela onde 23 estudantes foram assassinados pela política no dia 16 de junho de 1976.
O Apartheid oficialmente terminou com a chegada do Mandela à presidência, mas a situação do negro pouco mudou e, em alguns situações, até piorou, como a expectativa de vida desta população que diminuiu. O poder político trocou de mãos, mas o poder econômico continuou nas mãos dos brancos.
A resistência a este regime foi feita pelo Congresso Nacional Africano, liderado pelo futuro presidente, que rapidamente entrou na ilegalidade. O CNA criou de forma colaborativa e clandestina, com seus militantes discutindo em diversas aldeias do país, sob risco de prisão e morte, a Carta da Liberdade, que elencava as diretrizes de uma África do Sul sem racismo e desigualdades. O documento pregava, entre outras medidas, a necessidade da reforma agrária e da estatização das empresas que exploravam as riquezas minerais do país. Com Mandela livre e concorrendo à presidência, a elite branca, dona das fazendas e das mineradoras de diamantes e metais preciosos, se armou.
Esta pequena introdução é para fazer uma comparação com o Brasil, guardadas as devidas proporções: também temos um genocídio da população negra em andamento e a elite financeira, dona dos bancos e dos meios de produção, não vai abrir mão de seus privilégios sem lutar. Pensei nisso durante a entrevista do pré-candidato Guilherme Boulos no Roda Viva, que cita luta de classes e a necessidade de se enfrentar a minoria rica brasileira, aquele 1% que concentra 27% da renda.
Um dos mortos em Soweto sendo carregado |
Na África do Sul, fazendeiros literalmente se armaram e estavam prontos para atirar em qualquer um que tentasse fazer a reforma agrária. O grande desafio de Nelson Mandela foi: como colocar em prática a Carta da Liberdade sem começar uma guerra civil? Ou melhor: escolher entre um derramamento de sangue numa tentativa de colocar em pauta as mudanças solicitadas pela população negra ou deixar tudo como estava? Ele escolheu deixar tudo como estava.
Quando estava formando seu ministério, o novo presidente deixou os mesmos brancos que já estavam lá cuidando da economia. Nada foi mexido nesta área e o país continua sendo, até hoje, um dos mais desiguais do mundo. As favelas negras são mais insalubres do que as brasileiras. O povo continua pobre e sofrendo dos mesmos problemas. O poder político trocou, mas a chave do cofre continuou no bolso das mesmas pessoas.
Quando Boulos fala que é preciso enfrentar os banqueiros, que tiveram lucro recorde enquanto mais de um milhão de pessoas voltaram a cozinhar com lenha porque não conseguem mais comprar gás, ele está tomando uma posição de Mandela não teve coragem de tomar. Por lá, a minoria dona dos meios de produção se armaram, por aqui, estão mobilizando as Forças Armadas e a imprensa. O líder do MTST está extramente preparado para guiar o Brasil rumo a um mais com menos desigualdade social, mas será que ele é capaz de governar e evitar um golpe militar?
As ditaduras que floresceram na América Latina durante a segunda metade do Século XX tiveram objetivos econômicos, perpetrar mudanças que não seriam possíveis em países democráticos. Parar políticas desenvolvimentistas e privatizar empresas públicas em benefícios de grupos multinacionais. Essas pessoas estão dispostas a fazer qualquer coisa para ganhar mais dinheiro e proteger seus privilégios, até mesmo começar um regime de exceção ou uma guerra civil. E é este cenário que estamos voltando a vislumbrar no Brasil.
Assista a entrevista completa de Boulos abaixo:
PS: quando falo da elite brasileira, não estou falando de você que está lendo isso. Não falo de quem precisa trabalhar para se sustentar, independente do salário que tem.
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