sábado, 8 de junho de 2019

Recortes

Ano passado assisti num evento de cicloativismo a palestra da Clarisse Linke, diretora do ITDP, um instituto internacional que trabalha desenvolvendo a mobilidade sustentável em diversas cidades do mundo. Ela apresentou um recorte de gênero e etnia das locomoções por bicicleta.

Clarisse mostrou, em um estudo de caso, um mapa de calor que indicava os locais de moradia das mulheres negras e os locais que elas frequentavam, como supermercados, creches e escolas, de um determinado município. Em cima desse mapa colocou onde foram criadas as ciclovias, mostrando que a estrutura cicloviária tem cor e gênero, ou seja, foi colocada ali para atender homens brancos.

Há muito sabia que o movimento cicloativista é um movimento branco de classe média, mas foi nessa palestra entendi melhor essa dinâmica e compreender que é possível fazer recorte de classe, gênero, etnia sobre qualquer assunto.

Desde então tenho ficado mais atento durante as Escolas Bike Anjo, evento nos quais, dois domingos por mês, eu voluntariamente ensino adultos a andar de bicicleta. São raras as mulheres negras que vão, principalmente as com idade por volta dos trinta e quarenta anos. Quando aparecem, seguem o padrão de dupla jornada (trabalho e cuidados com a família) e que contaram com a ajuda de alguém para poderem deixar a casa num domingo. O tempo médio por aula é de trinta minutos, mas nestes casos sempre fico mais tempo. 


Gosto de conversar com meus alunos, saber um pouco de suas histórias e tentar criar algum vínculo emocional. Parece uma atividade frugal, de pouca importância, e em muitos casos realmente o é, mas ali lido com algumas questões muito importantes.

Uma vez atendi um mulher, nordestina, que levou uma surra do pai quando criança depois de subir numa bicicleta. Como se não bastasse, o pai passou um facão em sua orelha, mas do lado sem corte, para assustá-la ainda mais e fazê-la nunca mais subir numa bike. Isso não é coisa de menina.

Uma outra mulher perdeu a irmã atropelada enquanto pedalava na infância.

Idosas que sempre tiveram como sonho pedalar, atividade que só puderam realizar depois de ficarem viúvas e terem seus filhos criados.

No Bike Anjo lido com muitas dores e desigualdades, machismo, racismo, violências. Foram várias as lágrimas que vi correndo depois de proporcionar as primeiras pedaladas. 

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