quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A última do português*


Os primeiros foram chegando logo após o almoço. O óleo que esquentou lentamente abraça os primeiros bolinhos de bacalhau do dia. Alguns são servidos imediatamente e outros abastecem a estufa. Cervejas vão sendo consumidas quando, às dezoito horas, o movimento aumenta. 

Em silêncio, terminávamos o dia trinta e um de agosto com semblantes de tristeza. O país tinha acabado de sofrer um golpe de estado. Outra porção de bolinhos. As poucas palavras pronunciadas eram de tristeza e conjecturas sobre o futuro daquele que nos trazia mais uma garrafa.

Candido Torres chegou ao Brasil ainda adolescente e passou a vida indo do salão que ocupávamos à cozinha. Começou ao lado do pai e depois, com o irmão, o restaurante Singapura ganhou a alcunha que deveria ter sido sua verdadeira razão social: Bar do Candinho.

Quando aberto, há 54 anos, o balcão exibia postas generosas de bacalhau, lulas, polvos e graúdos camarões. Era uma casa executiva que alimentava com pratos portugueses altos funcionários de empresas do entorno. Aos poucos, as empresas foram fechando e mudando. A região foi esvaziando e o entusiasmo inicial diante dos primeiros boatos sobre a "revitalização" foi gradativamente sendo substituído por apreensão sobre o futuro.

Já passam de dois anos e meio que a Rua Pedro Ernesto está com suas entranhas abertas, com trânsito fechado para carros e desafiando os pedestres. A poeira entrando no salão e a lama em dias de chuva afastaram os fregueses, mas Candinho nunca se deu por vencido, até o dia em que chegou a ordem de despejo do proprietário que vendeu o prédio, exigindo urgência na desocupação.

Há poucos metros dali fica o Moinho Fluminense, que em breve se tornará um shopping e seus silos abrigarão quartos de um luxuoso hotel. Com VLT passando na porta, em pouco tempo a Praça da Harmonia passará por uma transformação que nos deixa apreensivos. Será que conseguiremos continuar pagando os aluguéis? Qual proprietário fará a próxima venda? Para alguns, "revitalização" significa expulsar populações tradicionais de seus territórios.

Com mais gente chegando, os assuntos vão se diversificando. As vozes, antes contidas, aumentam de volume. Com o fim das cerveja, o vinho rascante de garrafa PET foi sendo servido. Os bolinhos acabaram, vieram batatas fritas e ovos fritos com gema mole.

Risadas finalmente vão tomando conta do ambiente e todos se divertem com a rispidez do português negando os pedidos de fotografias. Mas aos poucos o turrão vai cedendo, sorrindo e, depois de galhofas, discursos emocionados e de gritos cadentes de todos os amigos (Candinho! Candinho! Candinho!), ele se esconde na cozinha numa tentativa frustrada de evitar que nós víssemos suas lágrimas. Alguns falaram que foi a primeira vez que Candido Torres chorou.







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* A Última do Português é o enredo do carnaval 2017 da escola de samba Vizinha Faladeira, também localizada na Região Portuária do Rio.

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