domingo, 12 de janeiro de 2020

Docas Dom Pedro II, o Galpão da Cidadania

Comigo-ninguém-pode, espada de são jorge, arruda, alecrim, guiné, manjericão e pimenta. A baiana, que chegou cedo ao Mercadão de Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, fez questão de escolher pessoalmente as melhores folhas.

Pouco tempo depois, já em casa, preparou com as ervas a água de cheiro que seria utilizada para a limpeza energética e espiritual de um local sagrado para ela e seus ancestrais. Junto com outras mulheres, todas descendentes dos que desembarcaram naquele chão, trazidos à força da África, começaram o ritual com muita cantoria e dança. O Cais do Valongo, ponto de chegada de aproximadamente um milhão de almas escravizadas, cantava. Do outro lado da rua, um prédio opulento parecia assistir à festa.

Apesar de não guardar mais suas características originais, o Docas Dom Pedro II ainda traz em suas fundações um pouco da história de André Rebouças, primeiro engenheiro negro a atuar no Brasil. Finalizado em 1875, o armazém foi construído com a mais moderna tecnologia inglesa de engenharia da época, em uma tentativa de modernizar a região portuária que precisava de um local mais apropriado para armazenar cargas que antes eram estocadas em precários trapiches, feitos de madeira, além de servir como local para pequenos reparos navais (1).
Crédito: Juan Gutierrez, 189(?)

Apesar de Rebouças ser um grande abolicionista, a razão pela qual não foi utilizada mão-de-obra escravizada na construção do prédio foi que, desde a década de 1850, já era padrão a contratação de trabalhadores livres para concessão de subsídios governamentais (2).

O local funcionou como doca até o início do século XX, quando foram iniciadas as obras que originaram o atual Cais do Porto do Rio, adequando, então, a cidade às novas necessidades do mercado internacional que exigia a utilização de navios de grande calado.

Com todo o entorno do prédio aterrado, o galpão, com 160 metros de extensão e 35 metros de pé-direito, ficou abandonado por longos períodos. Durante o regime militar, foi ocupado e modificado pelo exército como garagem de veículos blindados. E na década de 1990, pelo carnavalesco Joãozinho Trinta, que o utilizava para confecção de alegorias e realização de oficinas de arte.

Completamente abandonado e em péssimo estado de conservação, foi cedido no ano 2000 à Ação da Cidadania, organização da sociedade civil de combate à fome criada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que recuperou totalmente o prédio. Hoje ele é utilizado como espaço de promoção da cidadania através de eventos, oficinas culturais, apresentações artísticas e como sede nacional da campanha Natal Sem Fome, que em 2018 distribuiu mais de mil toneladas de alimentos para famílias em situação de insegurança alimentar em todo o Brasil.

Apesar de não guardar mais suas características originais, modificadas no governo militar – como o alinhamento da fachada frontal à recém-criada Av. Barão de Tefé – o prédio traz aos seus visitantes a falsa impressão de que ainda é do mesmo jeito que o deixado por Rebouças. Seus tijolos aparentes, porém, foram uma escolha estética do arquiteto Hélio Pellegrino, já nos anos 2000, para a reforma realizada pela Ação da Cidadania.

Tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2016, o Docas Dom Pedro II, também conhecido como Galpão da Cidadania, tem hoje sua vocação como espaço de preservação da memória afro-brasileira e também de luta por um Brasil sem fome e sem miséria.

Referências:

(1) SOARES, Carlos Eugênio. Valongo, Cais dos Escravos: Memória da Diáspora e Modernização Portuária na Cidade do Rio de Janeiro, 1668 – 1911. Museu Nacional, UFRJ, 2013. (Disponível em https://portomaravilha.com.br/conteudo/estudos/academicos/DOUTORAMENTO%20UFRJ%20ARQUEOLOGIA%20.pdf)

(2) INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Ata da 84ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Brasília, 24 nov. 2016. (Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/atas/ata_da_84_reuniao_conselho_consultivo.pdf)

Texto publicado no Jornal dos Vizinhos, integrante do projeto Escola do Olhar do Museu de Arte do Rio. 2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário