segunda-feira, 14 de maio de 2018

Calabouço

Autorizei o débito no cartão de crédito e em poucos segundos todos os romances de Machado de Assis estavam disponíveis para leitura no meu Kindle. Custaram alguns poucos reais e comecei com Esaú e Jacó, que inicia com a subida de Natividade e sua irmã, Perpétua, ao extinto Morro do Castelo para fazer uma consulta com uma bruxa.

O Morro do Castelo foi derrubado em 1922 e do local só sobraram o nome, que indica a região onde ele ficava no centro da cidade, e um pequeno trecho da Ladeira da Misericórdia, que só não foi abaixo também porque serve como parte da estrutura que mantém em pé a Igreja Nossa Senhora de Bonsucesso. Para mim é um local de reflexão, já sentei naquele calçamento de pé-de-moleque para imaginar o Rio em seus primeiros anos de fundação. Aquelas pedras fazem parte da primeira rua da cidade, e o arrasamento do morro foi uma violência histórica e cultural que teve como objetivo expulsar os pobres que moravam a poucos metros da recém criada Avenida Central, atual Rio Branco, com seus novos prédios de inspiração francesa.

Se fosse me casar numa igreja, seria esta que está aos pés da ladeira. Não apenas pela forte ligação com o Rio, mas por ser ali o local onde foram realizadas as primeiras apresentações teatrais, com índios catequizados dirigidos por padres jesuítas em encenações que contavam a história do cristianismo.
Ladeira da Misericórdia
Foi essa paixão pela gênesis da cidade que me levou a começar por Esaú e Jacó. Os olhos dos meus amigos brilham ao falar de Machado e Lima Barreto, o que sempre me deixou envergonhado por não ter lido nenhum deles. Sou um leitor tardio, comecei no ensino médio por influência de amigos. Foi Carlos Leandro quem me ofereceu a primeira publicação que li com gosto, O Menino Sem Imaginação, uma crítica bem humorada à sociedade e à televisão.

Meus pais sempre responderam positivamente os meus parcos interesses pela literatura e compravam os livros que me interessavam, além de fazer assinaturas de revistas. Ainda guardo muitos desses materiais no meu antigo quarto, dezenas de edições da Globo Ciência, atual Galileu, e uma coleção em capa dura de ciência para crianças, com várias experiências que podiam ser realizadas com itens caseiros. Só agora, ao escrever estas linhas, que me dou conta do quão importante isso foi para minha formação. Foi neste momento que o método científico fincou raízes no meu cérebro.

Embebido na leitura de Esaú e Jacó, fui até a casa onde o autor nasceu e passou seus primeiros anos, a uns 300 metros de onde eu moro. A residência está abandonada e não há nada que indique que ali morou o maior escritor brasileiro. Só sabemos disso graças ao trabalho do historiador Milton Teixeira, que recentemente fez esta descoberta. Outros dois locais onde Machado morou possuem placas indicativas: o prédio da Firjan na esquina da Rua Santa Luzia com a Graça Aranha e um prédio residencial no Cosme Velho, que rendeu-lhe o apelido de Bruxo do Cosme Velho. Apesar das casas não existirem mais, as placas não deixam esta história ser esquecida.

O que mais me surpreende é que a Ladeira do Livramento está na Região Portuária do Rio, um espaço também conhecido como Pequena África, tamanha a influência da cultura africana. Como forma de celebração, foi criado pela prefeitura um circuito com locais importantes para a cultura negra, como a Pedra do Sal (onde surgiu o samba), o Cais do Valongo (cais que mais recebeu africanos escravizados no mundo, foram cerca de um milhão) e o Cemitério dos Pretos Novos (onde os cativos que morriam por causa da péssimas condições da travessia do Atlântico eram enterrados). A casa onde Machado de Assis nasceu, que era negro, ficou fora do circuito.

A Pequena África recentemente ganhou o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, título em risco por conta de uma gestão incompetente da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro que ainda não realizou nenhum dos compromissos firmados com a Unesco, como a criação de um centro de visitação. Surpreendentemente, a secretária é negra e não faz absolutamente nada preservar essa história.

Infelizmente não me encantei com os romances do Bruxo. Achei difíceis, com palavras e referências que não conheço e uma estrutura de texto que não estou habituado a ler. Nem terminei Esaú e Jacó, o que me faz me sentir meio burro.

Curiosamente, foi uma tradutora estadunidense, responsável pela quarta tradução em inglês de Brás Cubas, que despertou em mim novamente a vontade de tentar. Em excelente artigo publicado na revista piauí, ela conta o desafio que foi traduzir a palavra calabouço, presente em dos trechos do livro.

Ponta do Calabouço
Apesar de grafado em letra minúscula, esta referência eu sabia. O nome se refere a um local onde os escravos eram castigados, já que seus proprietários eram proibidos de aplicar castigos físicos. Claro que esta regra não era respeitada, principalmente no interior, mas na capital do país era necessário pagar ao estado para que os negros fossem açoitados.

O Calabouço ficava perto do atual Museu Histórico Nacional e hoje seu exato local está na cabeceira do aeroporto Santos Dumont. Eu sobrepus uma mapa antigo com um atual, tirado do Google Maps.

Flora Thomson-DeVeaux, a tradutora, conta a saga que foi fazer esta descoberta, já que todos seus amigos cariocas desconheciam essa história. Assim como o Calabouço, os livros de Assis são repletos de referências que, apesar de estarem no cotidiano dos habitantes da cidade na época em que foram escritos, requerem grandes pesquisas para serem entendidas em sua plenitude. Fiquei impressionado com a pesquisa de Flora para achar a palavra perfeita para a tradução e com a solução encontrada, que vai virar uma nota de rodapé. Foi a partir daí que me dei conta das edições comentadas, que trazem anotações que ajudam o leitor contemporâneo a entender a obra. Acabei de comprar por três reais o Memórias Póstumas de Brás Cubas, comentado, ilustrado e com glossário. Vamos ver se desta vez eu consigo.

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