sábado, 13 de maio de 2017

Comida e viagem no tempo

Um dos relatos gastronômicos mais incríveis que já li foi o do Anthony Bourdain no livro Cozinha Confidencial. Seu contato, quando criança, com uma ostra foi uma experiência quase sexual, na qual ele compara o corpo mole daquele molusco e sua sua deglutição com a também incrível experiência do sexo oral.

Não tenho a mesma habilidade com as palavras (e com as panelas) que o Bourdain, mas tenho uma memória afetiva igualmente forte com uma sopa de siri mole feita pela minha vó paterna na Paraíba, a vó Nita, que despertou em mim a consciência da mágica que acontece na cozinha, o poder da mistura dos ingredientes e sua transformação em acolhimento espiritual. Para mim, a gastronomia é mais uma experiência religiosa do que sexual, mas igualmente intensa. Comendo, eu encontro deus.

Ostras da feira da Ribeira, Rio de Janeiro
Ecdise é o nome técnico para a troca do exoesqueleto dos artrópodes. Quando cresce, os siris e caranguejos precisam deixar a carapaça e esperar que outra, maior, endureça novamente. Neste ínterim ele se transforma numa iguaria que pode virar moqueca, ser frita, empanada, entre outras preparações.

Comentei outro dia com meus pais sobre essa memória afetiva e a vontade que surgiu em provar novamente o prato. Como ainda sou mimado, meu pai conseguiu comprar o siri mole e minha mãe cozinhou no leite de coco, com pirão acompanhando. Colocar aqueles siris na boca me transportou anos no passado, para a cozinha da vó Nita, quando acordava e encontrava a mesa do café pronta, com cuscuz, bolos e tapiocas. O cheiro dos cajus, vindo do quintal, e do fumo de rolo, do vô Eduardo.

Queria entrar naquela casa novamente e encontrá-la do jeito que lembro. As ruas de barro que eu percorria com dificuldade na Barra Forte do meu avô, a garagem transformada em vendinha onde ele servia doses de pinga, o quintal dos fundos e seus cajueiros, a cozinha com mesa sempre farta.

A comida também é uma máquina de viagem no tempo.


Relato de Anthony Bourdain em Cozinha Confidencial:
De modo que quando nosso vizinho, Monsieur Saint-Jour, o pescador de ostras, convidou nossa família para sair em suas penas (barcos para pescar ostras), fiquei entusiasmado. 
Às seis da manhã, entramos na pequena embarcação de madeira com nossos cestos de piquenique e nossos sapatos confortáveis. Monsieur Saint-Jour era um desgraçado de um velho encarquilhado, vestido como meu tio, com um macacão centenário de brim, alpargatas e boina. Tinha um rosto queimado de sol, de pele grossa, castigada pelo vento, de bochechas murchas e aqueles mesmos minúsculos vasos sanguíneos estourados no nariz e na face que pareciam marcar todos os moradores locais, de tanto tomar vinho Bordeaux. Ele não informara muito bem a seus convidados como seriam os trabalhos do dia. Saímos do ancoradouro e fomos até uma bóia que marcava seu parc de ostras subaquático, uma porção cercada da baía, e lá ficamos nós…sentados…sem fazer nada…debaixo do sol furioso de agosto, esperando a maré baixar. A ideia era fazer o barco flutuar por cima da cerca de estacas, depois ficar lá, até que o barco afundasse devagarinho junto com o nível da água, até repousar no chão do bassin. Só então, Monsieur Saint-Jour e presumivelmente seus convidados passariam a despregar as ostras, recolhendo uma boa quantidade para vender no porto, e removendo quaisquer parasitas que pudessem ameaçar sua colheita. 
Havia, lembro-me bem, ainda um meio metro de água para que o casco do barco assentasse em terreno seco e nós pudéssemos caminhar pelo parc. Já tínhamos dado cabo do brie, das baguetes e da água Evian, mas eu continuava com fome e, como sempre, alardeei o fato para quem quisesse escutar. 
Monsieur Saint-Jour, ao ouvir isso – como se desafiando seus passageiros americanos -, perguntou então com seu forte sotaque girondino se alguém gostaria de experimentar uma ostra. 
Meus pais hesitaram. Duvido que tivessem se dado conta de que talvez tivéssemos de comer uma daquelas coisas cruas e pegajosas sobre as quais estávamos boiando. Meu irmão se encolheu todo de horror. 
Mas eu, no momento mais soberbo de minha curta vida, levantei-me todo prosa, sorrindo desafiador, e me ofereci para ser o primeiro. 
E, naquele momento inesquecivelmente doce de minha história pessoal, e que permanece mais vivo do que tantas outras primeiras vezes que vieram depois – primeira trepada, primeiro baseado, primeiro dia de colegial, primeiro livro publicado, ou outro primeiro qualquer -, obtive a glória. Monsieur Saint-Jour me chamou até a amurada, debruçou-se até que a cabeça quase sumiu dentro da água e depois se endireitou com uma única ostra coberta de lodo, uma coisa imensa, de formato irregular, dentro da mão maltratada. Com uma faquinha curta de ostra, toda enferrujada, abriu aquilo e me entregou, diante dos olhares de todos, de meu irmão caçula encolhido, enojado com aquele objeto reluzente, de aparência vagamente sexual, ainda gotejante e praticamente vivo. 
Peguei-o na mão, virei a concha na boca, conforme as instruções do agora sorridente Saint-Jour, e com uma mordida e uma chupada, engoli. Tinha gosto de água do mar…salmoura e carne…e também…de futuro. 
Tudo passou a ser diferente. Tudo. 
Eu não só sobrevivera, como curtira.

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