terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Trenzinho é transgressão

Ao chegar em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, o visitante é recebido com placas que indicam ser ali a capital do agronegócio, mas acho que a cidade deveria ser conhecida como capital do trenzinho.

Com um dos maiores PIBs do Brasil, localizada num vale e cercada por cana, o município possui poucas opções de lazer gratuitas para crianças, por isso as dezenas de carretas equipadas com potentes aparelhos sonoros e luminosos, que saem todo final de semana, arregimentam uma multidão de jovens pobres nas áreas periféricas, enquanto a classe média está dentro dos shoppings.

O Rio de Janeiro tem uma relação única com os espaços públicos, praças e ruas são lugares vivos e ponto de encontro entre as pessoas. Outras cidades não possuem esse tipo de relação. Muitos ribeirão-pretanos consideram as ruas lugares perigosos e, apesar da cidade apresentar índices de violência mais baixos do que nas capitais (ninguém ouve tiro ou precisa fugir de arrastão), a impressão que tenho é que o medo é maior.

Os vínculos familiares são mais fortes e a rua não assume o papel de extensão do lar como no Rio. As únicas aglomerações se encontram nas mesas dos bares nas calçadas. Essa aparente aridez só é quebrada quando passa um trenzinho, que transforma a rua num carnaval.

Cheguei à praça, que estava com mato alto, iluminação precária e equipamentos danificados, por volta das 20h de sexta para embarcar no Big Folia, uma das maiores carretas de Ribeirão, que conta com uma estrutura de dois andares e é propriedade da mesma empresa da famosa Carreta Furacão. A garoa não impediu que aos poucos os passageiros fossem chegando. Logo fiz amizade com João*, um jovem de 16 anos mas que aparentava muito menos. Grande entusiasta deste tipo de diversão, gastou os únicos quatro reais na passagem de ônibus para acompanhar andando as duas viagens do Big Folia, e depois amargaria mais de uma hora de caminhada de volta para casa. Foi ele quem me ensinou muita coisa sobre os trenzinhos e em retribuição paguei uma viagem na carreta e a passagem do ônibus de volta.

É um fenômeno cultural incrível que precisa ser etnografado. É transgressão do início ao fim, e apesar da intenção do Ministério Público em proibi-la, a Câmara de Vereadores, junto com a população e os empresários, regulamentou a atividade através da Lei dos Trezinhos. Não sei como funciona a fiscalização, mas me pareceu que alguns dos dispositivos não estavam sendo cumpridos, como a proibição de músicas eróticas.


Fiquei aflito algumas vezes olhando o movimento do segundo andar. Crianças arriscando a vida entre carros em avenidas onde muitos motoristas não diminuíam a velocidade. Os personagens incorporavam uma mistura de bate-bola dos subúrbios cariocas, dançarinos e praticante de le parkour, num descaralhamento total pelas ruas. Resolvi separar os participantes por categorias, para melhor tentar entender o funcionamento desta festa:

Personagens: meninos com idades em torno dos 20 anos contratados para animar as viagens dos trenzinhos. Fofão, homem aranha, palhaço, Cascão, Cebolinha entre outros. São alvo de gozações e inveja dos outros adolescentes por serem cobiçado entre as meninas, muitas denominadas como Maria Trenzinhos. Ganham dez reais por festa.

Fãs mirins: crianças que frequentam os trenzinhos fantasiadas como seus personagens favoritos. Existe uma loja especializada neste tipo de traje na cidade.

Ciclistas: acompanham os veículos fazendo manobras pelas ruas.

Periguetes: meninas maquiadas e vestidas para festa que dançam e rebolam nos trenzinhos, que se transformam no equivalente das matinês quando eu tinha a mesma idade.

Personagens avulsos: jovens que usam fantasias improvisadas dos personagens e que animam a viagem dançando e fazendo coreografias, mesmo não sendo contratados da equipe.

Andarilhos: são aqueles que não possuem dinheiro para o ingresso (cinco reais) e que vão acompanhando o trenzinho a pé. Alguns se aproximam de adultos que estão na fila e puxam papo na esperança de conseguir que lhe paguem a passagem. Dois usaram deste expediente comigo. A maior parte dos andarilhos são crianças, e fiquei impressionado como que eles cruzam o bairro sem supervisão dos pais.

Seguranças: funcionários que trabalham evitando comportamento de risco dos clientes (ficar descalço no chão metálico do trenzinho é um comportamento de risco), não deixar que os mais afoitos no segundo andar cuspam nos personagens e tirar galhos e fios do caminho.

Esses são os que mais aparecem. Ainda tem os mecânicos, motoristas, DJs, costureiras entre outras funções de uma cadeira produtiva que gera renda para muita gente.

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