terça-feira, 15 de outubro de 2019

Soberania Alimentar

Meu atual passatempo é assistir Quilos Mortais (My 600-lb Life), reality que acompanha durante um ano um paciente com no mínimo 270 quilos candidato à cirurgia bariátrica numa clínica em Houston. São histórias muito tristes e a taxa de sucesso na manutenção do peso a longo prazo é de apenas 5%.

O que me incomoda é que toda a responsabilidade pela obesidade é colocada apenas nos pacientes, excluindo fatores sociais que estimulam o alto consumo de alimentos ultraprocessados, mas isso é bem típico dos Estados Unidos, país que busca soluções individuais para problemas coletivos.

Outro dia um cidadão que iria começar o primeiro dia no emprego novo teve o carro quebrado. Ele acordou de madrugada para andar os 20 quilômetros até a empresa, quando foi parado na highway por um policial que deu-lhe carona. O caso viralizou e o empregado ganhou um carro do patrão por causa da sua dedicação, mas ninguém discutiu o por quê de não haver linhas de ônibus urbanos para atender a população.

O mesmo acontece em Quilos Mortais. A culpa é do indivíduo e cabe a ele sozinho buscar a solução. Não são discutidos os subsídios governamentais que mantêm baixo o preço dos ultraprocessados, a falta de uma regulamentação que proteja as crianças do excesso de publicidade, a falta de estímulos para criação de uma cadeia produtiva de alimentos saudáveis, educação alimentar etc. Por isso a taxa de sucesso é tão baixa, porque é insano querer que um indivíduo sozinho vença uma indústria bilionária.

Nunca fui obeso, mas já estive acima do peso. Iniciei minha reeducação alimentar há oito anos e o primeiro passo foi comer apenas um, dos tradicionais dois, acarajé da Ciça, barraca na Praça XV onde batia ponto toda sexta-feira. Desde então tenho dado pequenos passos e o mais recente foi cortar a carne das minhas escolhas individuais. Bicho, agora, só em situações de coletividade, como num churrasco entre amigos ou naquele filé aperitivo para dividir com a galera no bar.
A preparação
Todo final de semana vou à feira, faço visitas constantes ao supermercado e cozinho quase todas minhas refeições, e isso consome muito do meu tempo, mas faço isso com prazer. Mas a alimentação vai além de questões nutricionais, é preciso falar também de soberania alimentar.

Soberania alimentar é o direito dos povos de decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares, decidir o que e como cultivar, o que destinar ao mercado interno e externo e a gestão dos recursos naturais. Ou seja, quando a maior parte da nossa comida vem apenas das 10 multinacionais que controlam o mercado mundial de alimentos, estamos abrindo mão da nossa soberania alimentar. O resultado disso é que estamos nos envenenando, poluindo o planeta por causa da quantidade absurda de resíduos das embalagens, concentrando renda nas mãos destas empresas, perdendo nossas tradições culturais alimentares entre outros problemas.

Existem várias visões de mundo. Na minha, a cadeia produtiva é controlada pela população e não pelos departamentos de marketing e P&D das multinacionais, respeitando culturas e o meio ambiente, com participação da sociedade em conselhos que orientam as políticas públicas do setor, incentivando a agroecologia e protegendo comunidades tradicionais.

Foi exatamente esse modelo, orientado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado pelo Betinho e extinto pelo Bolsonaro, que contribuiu para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014. O Consea era formado por diversas entidades da sociedade civil e foi dele que saíram ideias de projetos que acabaram com a fome de milhões de pessoas, como o Programa de Aquisição de Alimentos, que consistia na compra de alimentos de pequenos produtores para abastecer aparelhos municipais, como escolas e hospitais, e o restaurante popular, para atender a população urbana em extrema vulnerabilidade.

Diante de extinção do Consea, está sendo organizada para maio a Conferência Nacional, Popular, Autônoma por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Deve acontecer no Maranhão ou Bahia e tenho participado de algumas reuniões de organização representando a Ação da Cidadania, que recentemente lançou a campanha Natal Sem Fome para alertar sobre a volta do Brasil ao Mapa da Fome da ONU.

A gente trabalho no grande, forçando a criação de políticas públicas, mas a gente também trabalha no miudinho. Outro dia um amigo me pediu para ajudá-lo a mudar seus hábitos alimentares. Começamos aulas de gastronomia na minha casa e também vamos fazer visitas à feiras e ao Armazém do Campo - RJ, loja que vende produtos oriundos de assentamentos e da agricultura familiar. Vamos ler e discutir o Guia Alimentar Para a População Brasileira e, obviamente, comer boa comida.

Nosso primeiro encontro foi domingo e fizemos nhoque de batata roxa com molho de tomate e aspargos grelhados. A entrada foi salada. Tudo feito com ingredientes frescos. Ficou lindo. E delicioso.
O resultado
Deixo como referência o documentário Histórias da Fome no Brasil, que contou com apoio da Ação da Cidadania. Taí, completo para ser assistido.

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