quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Rua City Lab* e cidades para pessoas

Atualização (abr17): o Rua City Lab agora é NAU - Núcleo de Ativação Urbana


Na foto, duas formas de pensar a cidade. Uma delas acredita na diversidade como potência, a outra na regulação das atividades que nela são permitidas.

O Rua City Lab

Quando tomei conhecimento do Rua City Lab, fui procurar alguma informação sobre o financiador da iniciativa, que conta com uma cara estrutura e estava em busca de pessoas para ocupar o espaço. É um laboratório cujo objetivo é pensar a rua em todas suas manifestações, artísticas, culturais, gastronômicas, empreendedoras e criativas. Segundo o site:
O Rua City Lab incentiva o desenvolvimento da região, juntando pessoas da área e cabeças pensantes a vivenciar o dia a dia e realizar o novo porto.
Estão na moda esses 'Labs' e alguns deles desenvolvem atividades bem interessantes, como o Lab Rio, de experimentação de novas ferramentas de participação cidadã na gestão da cidade, e os Fab Labs, que possuem maquinários para criação de hardware, ambos participantes de redes com filiais em diversas cidades do mundo. Por isso meu interesse em conhecer melhor o empreendimento do Santo Cristo, bairro da Região Portuária periférico ao Porto Maravilha.

Na internet não achei nenhuma informação, mas foi conversando com algumas pessoas que descobrir que o prédio é da Odebrecht, então surgiu a segunda e mais importante pergunta: qual o interesse de uma empreiteira, que constrói, entre outras coisas, condomínios fechados, em financiar um espaço para pensar a rua?

Os novos espigões envidraçados ainda estão vazios, o Ibis vive às moscas, ninguém interessado em empreendimentos residenciais e muitos terrenos ainda disponíveis para construção. A área 'nova' do Santo Cristo, que engloba o hotel, o Rua City Lab e o Porto Atlântico, não possui circulação de pessoas e está completamente sem vida. O laboratório e o recém inaugurado Passeio Ernesto Nazareth são tentativas desesperadas de forçar a entrada do bairro num cenário cultural carioca 'moderninho' e 'deslocado', semelhante ao da Zona Sul, apagando a centenária cultura local, popular, e afastando seus indesejáveis moradores. É uma tentativa de promover o interesse por mais da metade do potencial construtivo que ainda não tem compradores.

O Porto Maravilha é sobre apagamento de memória. É a seleção oficial das histórias que podem ser contadas e regulamentação da rua.

O Passeio Ernesto Nazareth

Anunciado como um parque que teve como modelo o Las Ramblas, de Barcelona, o passeio foi criado com o objetivo de  estender o Boulevard Olímpico e trazer gente para 'área nova' do Santo Cristo, com cariocas e turistas caminhando e desfrutando de todas as atividades que a arte do encontro são capazes de proporcionar (link 1 e link 2). Vejam abaixo a projeção de como ficaria o parque e como ele realmente ficou, numa visita que fiz num domingo de sol.

Passeio Ernesto Nazareth expectativa

Crédito: divulgação

Crédito: divulgação
Passeio Ernesto Nazareth realidade

Ao fundo, o Novocais, propriedade da Odebrecht que financiou o 'parque'
Nas projeções, diversos prédios, residenciais e comerciais, gente circulando. Na realidade, um espaço árido sem nenhum atrativo, incapaz de fazer com que uma única pessoa tenha vontade de passar seu tempo ali.

O desejo da Odebrecht em trazer movimento para a região, apagando a cultura popular do bairro e forçando sua entrada num circuito higienizado, bronzeado, 'xovem' e empreendedor, tem como único objetivo vender prédios. O Rua City Lab está a serviço da especulação imobiliária. Não vou entrar na discussão se este é um desejo legítimo ou não, mas, se eu fosse investidor, deixaria meu dinheiro longe dessa roubada. Não que eu seja contra novos residenciais ou que empresas se instalem na região, mas pelo jeito como a coisa está sendo feita.

Como é uma cidade viva

Morte e Vida de Grandes Cidades, publicado por Jane Jacobs em 1961, pauta novos urbanistas no planejamento de cidades vivas, com gente nas ruas e diversidade. Citou quatro condições urbanas necessárias para que isso aconteça:

1ª condição: os bairros precisam atender a mais de uma função principal, garantindo circulação de pessoas em diferentes horários do dia.

Um bairro majoritariamente comercial só terá gente circulando em horário comercial, ficando vazio a noite e nos finais de semana. O contrário acontece num bairro majoritariamente residencial. Esses períodos de esvaziamento estimulam a violência e vandalismo. O ideal é que todas as áreas da cidade combinem residências, escritórios, comércio e lazer.

2ª condição: a maioria das quadras precisa ser curta, ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes.

Isso possibilita que os transeuntes tenham mais opções de caminhos para chegar a algum lugar, fazendo com que eles conheçam melhor a vizinhança.

3ª condição: o bairro deve ter uma combinação de edifícios com idades e estados de conservação variados, e incluir boa porcentagem de prédios antigos.

Prédios novos são mais onerosos, restringindo as atividades que neles podem acontecer. Prédios antigos são mais em conta e possibilitam atividades de menor rentabilidade, tornando assim as ruas mais diversificadas.

4ª condição: o bairro precisa ter uma concentração suficiente alta de pessoas, sejam quais forem seus propósitos. Isso inclui pessoas cujo propósito é morar lá.

Não sou urbanista, mas na minha opinião o principal erro da prefeitura foi não ter tomado para si a responsabilidade de construção de moradias populares na Região Portuária, ter deixado isso para o mercado que, como se pode ver, não demostrou interesse.

Em 2001 a Caixa Econômica comprou em leilão todos os Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), mas, como a procura foi baixa, a prefeitura resolveu recomprar os lotes para que ela mesma possa oferecer às empresas. É uma transação muito estranha que precisa de transparência, já que essa recompra provavelmente onerou o município, visto que precisaria garantir o lucro da Caixa. Sem falar do uso de dívidas do ISS, mas como dívida vira Cepac não tá explicado (link).

Jan Gehl lançou em 2010 o livro Cidades Para Pessoas, ilustrado com exemplos práticos da teoria de Jacobs. Juro que não entendo o motivo para criação de um laboratório para pensar coisas que já foram pensadas e comprovadas. Me pergunto se a galera do Rua City Lab conhece essas novas tendências urbanas, quando vi no site deles a imagem abaixo:

Não houve participação popular no projeto do Porto Maravilha
Cidades tema capacidade de fornecer algo para todos apenas quando esse algo é criado por todos. Jane Jacobs.
Como não houve participação popular no Porto Maravilha, aquele pedaço do Santo Cristo continuará o deserto que é agora, não é esse arremedo de participação que vai mudar a situação. Felizmente, a uns trezentos metros dali, na 'parte velha' do bairro, seu Guarabira garante o movimento do bar vendendo cerveja gelada e refeições a preços módicos. A padaria ao lado garante a circulação de moradores em busca de pão fresco. Ali, a vida pulsa, transborda, sem a necessidade de um laboratório, mas não é esse tipo de vida que interessa aos especuladores.

Guarabira e o pernil marinando no molho para ser assado no dia seguinte

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