terça-feira, 22 de maio de 2018

Multa a pedestres

A partir de 2019, pedestres que não atravessarem na faixa poderão ser multados, e vou mostrar porque isso é errado e uma forma de penalizar os mais fracos.


Esse cruzamento fica perto da minha casa. Se eu quiser atravessar a rua Camerino, do ponto A ao ponto B, seguindo o planejamento de prefeitura, eu teria que passar por três sinais (C, D e E) e andar  um total de 300 metros para chegar até a pastelaria da esquina. Isso tudo simplesmente para chegar ao outro lado da rua. Você acha justo eu ser multado por ir do A ao B nestas condições?

Outra situação: esta matéria do Bom Dia Brasil coloca a culpa no pedestre pelos riscos que ele corre ao atravessar a rodovia num ponto distante 300 metros da passarela. Mas a distância é o dobro dessa, já que são necessários caminhar mais 300 metros para chegar ao destino. Considerando ida e volta, são um quilômetro e duzentos metros a mais.

Poderia ficar aqui o dia inteiro citando outros exemplos e mostrando o quanto a política de mobilidade do Brasil privilegia há mais de cinquenta anos os deslocamentos por carro.

O gráfico abaixo mostra a evolução da engenharia de tráfego:

Fonte
No Século XIX, quem quisesse fazer um trajeto a pé ou a cavalo percorreria a mesma distância. No início do século seguinte, os bondes, uma novidade na época, percorria um pouco mais em comparação aos outros modais, assim como os carros a partir de 1920. De 1950 em diante, a menor distância percorrida entre dois pontos sempre vai ser de quem estiver dentro de um carro. Explico:

O cidadão que resolver percorrer a pé toda a extensão da Avenida Presidente Vargas vai andar mais do que seus quatro quilômetros. Na esquina com a Avenida Passos não existe sinal para pedestre, obrigando o caminhante a fazer um desvio de 50 metros Passos adentro e depois voltar outros 50 para continuar sua jornada. Esse tipo de percurso acontece ao longo de toda a Vargas, mas se a pessoa resolver fazer o mesmo trajeto de carro vai encontrar um linha reta sem nenhum tipo obstáculo.

Outro dia fui numa empresa que fica no Trevo das Missões, entroncamento entre a Avenida Brasil e a Washington Luiz. Na volta, perguntei a um ambulante como acessar o ponto de ônibus, já que não via sinal nem passarela. Recebi um conselho: pede para papai do céu e vai. O ponto, não oficial, é um acordo entre motoristas e passageiros para que os trabalhadores não fiquem sem transporte, já que a prefeitura ignora totalmente a presença de gente naquela região.

Nossa vida andando na cidade é assim, pedindo para papai do céu e indo.

Para tentar forçar o pedestre a seguir esse planejamento tacanho, grades são colocadas nas calçadas, mas quem já estudou minimamente urbanismo sabe que muitas pessoas continuarão atravessando fora da faixa e abrindo buracos nas cercas, aumentando ainda mais seus riscos.

A preferência sempre vai ser do carro, fazendo com que o cidadão que precisa enfrentar ônibus lotado todos os dias almeje comprar um ao invés de vislumbrar uma cidade que ofereça igualmente a todos os modais a mesma possibilidade. O resultado dessa política todos nós conhecemos, que são os engarrafamentos, acidentes, poluição, estresse, mortes e doenças.
Acima, espaço que a locomoção individual motorizada ocupa no planejamento das cidades. Logo abaixo, a forma como deveria ser, com todos os modais recebendo o mesmo tratamento.
Cresci vendo filmes policiais ambientados em Nova Iorque dos anos 80, com aquelas cenas de perseguição e tiroteios no meio das ruas engarrafadas, cinzas e poluídas, realidade bem parecida com a do Rio de Janeiro de hoje (inclusive com os tiroteios). Graças a uma política urbana revolucionária, agora a Big Apple é um exemplo para o mundo, mostrando como diminuir os engarrafamentos reduzindo os espaços para os carros, cortando vagas de estacionamento nas ruas, alargando calçadas, criando novas praças, espalhando ciclovias e investindo no transporte público. Abaixo, uma foto do antes e depois da Madison Square, a esquina mais famosa mundo, da Quinta Avenida com a Broadway:


Outros exemplos abaixo:
Nova Iorque: ruas deram lugares a boulevares
Los Angeles seguiu o exemplo

Por que não dá para fazer isso no Rio?

Nos Estados Unidos e na Europa esse sucesso só pode ser atingido por causa do forte investimento em transporte público, e esse é o principal motivo que dificulta a implementação desse modelo no Brasil. Por aqui, empresas de ônibus são os principais financiadores das campanhas eleitorais, e quem paga a conta escolhe a música. Quase todos os vereadores e prefeitos recebem dinheiro daqueles que mais ganham com o sucateamento do transporte, o que permite reajustes nas tarifas acima da inflação, veículos velhos em circulação e horários irregulares. Por isso, metrô e barcas ficam em segundo plano. O mesmo acontece em nível federal, com montadoras ganhando incentivos fiscais para vender cada vez mais carros.

O mais curioso é que o único candidato a prefeito do Rio que não aceitou doações dos empresários de ônibus e resolveu enfrentar esse modelo perverso que massacra o carioca, querendo adotar uma política pública parecida com a de Nova Iorque, foi um socialista. Podem me chamar de esquerdopata, mas vai ser Marcelo Freixo quem um dia vai fazer isso por aqui.

Em São Paulo, o petista Fernando Haddad não conseguiu se reeleger. Enquanto prefeito, também resolveu investir no transporte público e ciclovias, reduziu a velocidade nas marginais, diminuiu os espaços para carros e abriu a Avenida Paulista para pedestres aos domingos. Qualquer semelhança com Nova Iorque não é mera coincidência.

Não tá acreditando? Veja a matéria abaixo no Jornal Nacional:



Zero mortes

Como pode ser visto acima, Nova Iorque adotou uma meta ousada, a de zerar o número de mortes no trânsito. Para isso, deu prioridade aos pedestres, aumentou as multas, reduziu velocidades e os espaços destinados aos carros. Desta forma, reduziu a quantidade de óbitos para o mesmo patamar de 1910, quando as ruas eram ocupadas por carroças.

Talvez zerar o número de mortes não seja uma meta atingível, mas é o que norteia toda a política urbana da cidade. Chorei vendo o vídeo abaixo, quando um cidadão é perguntado qual seria o número tolerável de óbitos:


Mas no Brasil o deslocamento de carros tem mais importância que a vida das pessoas, e assim continuamos matando. Tentar obrigar alguém a esperar três sinais e andar 300 metros para atravessar uma rua é aumentar ainda mais os riscos de morte, já que a realidade mostra que ninguém vai fazer isso. Ninguém vai andar 300 metros para chegar até a passarela, totalizando 1.200 metros ida e volta, ou 20 minutos a mais para uma tarefa que deveria levar poucos segundos.

Cidades modernas já entenderam isso e deram prioridade aos deslocamentos a pé, salvando milhares de vidas por ano. Apesar da nossa legislação preconizar que o pedestre tem prioridade, nossa realidade mostra outra coisa. 

É triste viver num país onde minha vida vale tão pouco.

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